O ar pesado, luzes de neon preenchem o cenário enquanto se explora os becos e as ruas de uma cidade tomada pela corrupção e crime. Uma chuva incessante, um grupo de estrangeiros em um ambiente hostil. A busca por quem o acolheu quando criança e um preço em sua cabeça. O mundo de Shadowrun: Hong Kong, mais uma vez, mistura beleza, violência e visuais impressionantes.
Diferente de Shadowrun: Dragonfall, Hong Kong toma um ar mais pessoal, uma história mais íntima sobre a reunião de dois irmãos e um pai desaparecido. Vindos de Seattle, o personagem principal, criado por você, e seu irmão tentam descobrir os motivos de seu pai adotivo tê-lo contatado após tantos anos.
Não tardou para que a história me envolvesse por completo. Enquanto Dragonfall demora a pegar o ritmo, Hong Kong te joga no meio da ação em questão de minutos. O combate por turnos – carro chefe da série – sofre alguns refinamentos na interface, mas nada impressionante. Dentre os três jogos feitos pela Harebrained Schemes, ele se apresenta como o mais fácil tanto para compreender as mecânicas como para não pegar os novatos desprevenidos.
Tal “facilidade” é vista com mais clareza na criação do personagem. Mesmo ao cometer deslizes na alocação de pontos de habilidade, não havia uma punição por isso. Torna-se viável terminá-lo com um personagem completamente desbalanceado ou com uma árvore de habilidades que não condiz com o que se usa em batalha.
As batalhas pré-definidas – aquelas que ocorrem em decorrência de avançar na história – estão um passo atrás de Dragonfall. Para um sistema onde posicionamento, cobertura e flanquear são essenciais, Hong Kong não consegue tirar nenhuma emoção. Momentos de tensão foram raros, enquanto os erros da inteligência artificial aumentam a cada passo.
Certos embates ficam na memória, principalmente aqueles onde o inimigo corre em direção aos personagens ao invés de se proteger atrás de uma mesa. Por que ele fez isso? Jamais saberei explicar, pois isso acontece mais do que deveria.
A maior preocupação para o combate é que, após três jogos, ele começa a se tornar repetitivo. Os refinamentos foram necessários, mas não o suficiente para dar uma boa repaginada no que começo a considerar a área mais fraca de Shadowrun. Há variedade nas habilidades e poucos momentos para usá-las em todo seu potencial. Isso é, a não ser que jogue nas dificuldades elevadas, o que torna os inimigos com mais pontos de vida e não numerosos.
O problema em torná-los mais resistentes é simples: Não é divertido demorar turnos e mais turnos só porque um inimigo tem muito “HP”. Torna a batalha entediante, é realizar as mesmas ações repetidamente ao invés de pensar a fundo em como derrotá-lo. Seria mais interessante aplicar um sistema de “resistências”, como certos tipos de armas de fogo ou magias. Isso faria com que pensássemos mais estrategicamente ao invés de ficar a atacar, atacar, atacar para sempre.
Enquanto o combate não me faz cair de amores, a ambientação fez com que eu me apaixonasse completamente. Dos esgotos, palco de assassinatos e contrabando, à cidade muralhada de Kowloon, Hong Kong cyberpunk é facilmente um dos locais mais assustadores e bonitos a ter visitado recentemente em um jogo.
Por trás das cintilantes placas de Neon ou do cenário “high tech” há uma longa história de opressão, batalhas de classes e grandes corporações que controlam países – uma temática recorrente de Shadowrun, dessa vez ainda mais evidente. dessa vez ainda mais evidente. As descrições de certas áreas são de embrulhar o estômago. Favelas controladas pelo tráfico, onde as gangues ditam a lei. Aqueles que não seguirem o código acabam mortos, torturados ou de maneiras ainda piores. Paralelos com a realidade são feitos a cada encontro, coisas que veríamos no noticiário com um enfoque futurista.
A estrutura das missões ajuda a fortalecer essa ambientação e ao mesmo tempo enfraquecer a história principal. Assim como nos antecessores, o grosso da trama se desenrola no hub central de Heoi, área onde se reestoca munição, compra-se equipamento e aceita missões. Tanto Dragonfall como Hong Kong sofrem do mesmo problema que outros RPGs com múltiplas áreas ou caminhos a serem seguidos; a falta de urgência da história principal.
É muito fácil perder o foco dos objetivos, esquecer do que a trama principal gira em torno. O “lore” está muito mais denso do que nos antecessores. NPCs têm tantas coisas para falar que comecei a não me importar tanto com a quest principal, ainda mais com side-quests tão recompensadoras e divertidas. Não defendo uma linearidade em RPGs, mas acredito que a história principal seria melhor aproveitada no momento que fosse reforçada ao jogador ou que o desenvolvimento dela não dependesse apenas de missões primárias.
Todavia, a caracterização dos personagens e suas motivações continua melhor do que nunca. Não são apenas NPCs que vivem em um universo digital, são “pessoas” que tomaram decisões na vida e agora tem de arcar com elas. É sobre fazer o que tem de ser feito e viver com as consequências disso.
Em cada canto de Hong Kong há um pequeno conto para se desvendar. Uma estudante que ousou adentrar o território das gangues para buscar uma solução para as mazelas da população oprimida, a traição que gerou assassinatos em massa só por uma margem de lucro maior. O quão isso estará visível cabe apenas ao jogador descobrir. Eu poderia passar horas em conversas com outros personagens ou apenas ir para a próxima missão. Escolher a segunda opção torna Shadowrun: Hong Kong um mero jogo de estratégia por turnos e reduz consideravelmente o brilhantismo dele.
A ambientação não funcionaria se não fosse pela já maravilhosa direção de arte de Shadowrun. Hong Kong o coloca em outro patamar quando comparado com trabalhos anteriores da Harebrained Schemes. Os modelos receberam uma melhoria significativa. Os humanos agora não têm uma proporção estranha, enquanto os anões deixaram de parecer modelos apenas reduzidos de humanos.
A interface, principalmente no gerenciamento de inventário e habilidades recebeu uma boa recauchutada. Agora está mais fácil de mover os itens e administrar a equipe no geral. Não chega a ser a melhor que já usei no gênero, mas perto do absurdo do que era em Shadowrun Returns, definitivamente um passo à frente.
A área que recebeu uma repaginada significativa foi a Matrix, a rede de computadores mundial, palco para os hackers acessarem dados e roubarem informações. Antes, uma área que foi “esquecida” agora conta com mecânicas únicas e mais desafios para aqueles que optarem por jogar de Decker. Essa não foi uma mudança que senti tanto, afinal jogo principalmente como um Street Samurai, talvez a classe mais simples de se aprender. Sua inclusão, porém, gera mais diversidade a um sistema que urgentemente carecia de atenção.
Não poderia deixar de faltar a belíssima trilha sonora, feita por Jon Everist. O tema de Heoi não é só agradável de se ouvir, ele consegue passar tão bem a “identidade” daquele local, da cidade, do mundo futurista. Às vezes, adiava uma missão apenas para “sentar” e aproveitar um pouco do que Heoi oferecia. Seja uma breve conversa com um grupo de idosos que jogavam Mahjong ou um Decker que vendia as tecnologias mais avançadas do mercado para aqueles que tinham dinheiro.
RPGs, acima de possuírem um sistema de combate bom, precisam me cativar a explorá-lo, sentir e deixar a minha presença nele. Shadowrun: Hong Kong consegue criar essa sensação de um mundo “vivo”. É um jogo que irá recompensar os exploradores, os minuciosos e aqueles que optarem por tomar a decisão mais ousada. É sobre aprender as consequências da vida e para onde elas te levam. Em um ano tão recheado de RPGs, difícil considerá-lo o RPG do ano, mas estará facilmente entre os dez melhores.
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